Mal eu desci do carro e ouvi um “salve ‘dotô’”: era o Jacaré. Eu não o via havia seis meses. No sorriso, em primeiro plano, a vistosa dentadura fruto de rifa vendida aos clientes.
O sorriso revelava também a satisfação por ter concluído sua casinha, com o suor do trabalho de cuidador de carros e outros bicos. Mas a coisa não anda bem, o movimento está fraco e, recém concluída a casa, ele teve que alugar um dos dois quartos para complementar a renda. Perdeu o pai e, hoje, ajuda a mãe. Por isso, não dá para bobear!
Ele contava toda essa história com o mesmo sorriso, o que me fez pensar que o dentista tinha errado na mão e, ao colocar a dentadura postiça, tivesse também implantado um sorriso permanente no Jacaré: não era possível que, com tantos problemas, o seu astral permanecesse para cima. Mas era o jeito do Jacaré remar contra a maré, de reforçar sua autoestima e de fortalecer seu estado de espírito porque, se for buscar explicação racional para as agruras da vida, as coisas se tornarão mais difíceis. Assim, o sorriso é a melhor arma para tocar a vida. Que segue, deixa para lá.
Em outros tempos ele tinha trabalho na carga e descarga de caminhões e, junto com o bico dos finais de semana, construiu a casinha. Fiquei pensando de onde vêm a força do Jacaré, como a de tantos outros brasileiros e brasileiras, para manter a chama acesa diante de tantos contratempos.
Por ter ficado constrangido, eu evitei avançar em perguntas e não sei em que classe dos mais de 28 milhões de trabalhadores brasileiros subutilizados o Jacaré se encaixa: se faz parte dos 13 milhões de desempregados, dos 7 milhões de subocupados, dos 3 milhões que poderiam estar ocupados mas não estão, ou se ele é um dos 5 milhões de desalentados.
É insano pensar que nossas elites econômica e política insistam em não avançar em políticas para aproveitar o enorme potencial de um país rico como o Brasil, propondo programas de austeridade que, direta ou indiretamente, aumentam ainda mais nossa inconcebível desigualdade.
Só seremos um país equilibrado, com um ambiente favorável aos negócios e com perspectiva de longo prazo, se formos capazes de propor políticas ambiciosas compatíveis com a grandeza do Brasil, gerar oportunidades e distribuir riqueza.
O certo é que tudo isso me fez pensar no papel das cidades, isto é, da gestão pública na promoção de perspectivas para os jovens e outras gerações. Existem caminhos para o protagonismo das cidades na geração de oportunidades. O plano diretor pode ter um papel estruturante ao orientar vetores de crescimento e integrar o desenvolvimento habitacional e de negócios. Um olhar para o jovem estimulando o empreendedorismo local e atividades relacionadas à cultura, arte, música, dança e teatro.
A regulamentação, no âmbito municipal, da lei da micro e pequena empresa e a organização de políticas tributárias e fundiárias orientadas ao fomento de atividades produtivas intensivas de emprego são importantes ações.
Outro caminho é a instituição de uma agência de desenvolvimento local com capacidade de oferta para microempreendedores e de outra que pudesse fazer a intermediação entre a oferta de mão de obra e vagas disponíveis.
Pensando em fortalecer a economia local, o poder público municipal pode contratar obras (infraestrutura) e serviços de empresas pequenas ou médias locais, desde a compra de produtos da agricultura familiar para a merenda escolar da cidade, até a contratação para prestação de serviços no município. Da mesma maneira, sensibilizar e incentivar as empresas a contratarem pessoas com deficiência e minorias.
A superação da crise econômica que vivemos tem muito a ver com políticas do Governo Federal, responsável pela proposta de um projeto de país que gere confiança e perspectivas para a sociedade e as empresas.
Mas, enquanto este projeto não vem, o Jacaré e tantos outros podem encontrar no governo local o animador de oportunidades que lhes permita viver com dignidade.
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