Prática Trabalhista

Covid-19 é ou não doença ocupacional do trabalho?

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Maria Cibele de Oliveira Ramos Valença

    é sócia da área Trabalhista e Previdenciário do FAS Advogados.

3 de setembro de 2020, 8h00

No último dia 1º, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria nº 2.309, de 28 de agosto de 2020, que atualizou a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), destinada a orientar os profissionais do Sistema Único de Saúde acerca da caracterização das relações entre as doenças e as ocupações profissionais.

ConJur
A Covid-19, causada pelo coronavírus, tinha sido listada inicialmente como doença ocupacional, relacionada ao trabalho. Entretanto, a referida norma foi tornada sem efeito no dia seguinte, por meio da Portaria nº 2.345, de 2 de setembro de 2020.

E essa mudança de entendimento do Governo Federal decorreu da grande divergência de interpretação de que a contaminação pelo coronavírus pudesse ser entendida como acidente do trabalho reconhecido como tal pelo INSS, quando o afastamento ocorresse por período superior a 15 dias, com direito a todos os reflexos trabalhista e previdenciários daí decorrentes.

Aliás, como exemplo dessa confusão interpretativa, alguns Fiscais do Trabalho já têm exigido que as empresas emitam a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) para qualquer contaminação de empregados pela Covid-19.

Assim, a suspensão dos efeitos da portaria ministerial é oportuna, pois a discussão sobre o enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional se arrasta desde a Medida Provisória nº 927, de 22/3/2020, que determinou que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. Importante lembrar que no 29/4/2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela suspensão da eficácia do referido dispositivo legal, trazendo interpretações de que a contaminação pelo vírus no ambiente laboral não pode ser presumida.

Registre-se que a doença ocupacional é um gênero do qual são espécies a doença profissional e a doença do trabalho, previstas que estão na legislação previdenciária (artigo 20, I e II, da Lei n.º 8213/91), cujo enquadramento decorre da existência de nexo causal presumido ou não.

O nexo causal presumido apenas poderá ser reconhecido quando relacionado ao NTEP — Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário, nos termos do artigo 337, §3º, do Decreto nº 3048/99, conforme relação disposta taxativamente na Lista C. do Anexo II, do mesmo texto legal.

Também não deve ser esquecida a previsão inserta no artigo 20, §1º, alínea "d", da Lei n.º 8213/91, que dispõe que não são consideradas como doença do trabalho as doenças endêmicas adquiridas pelos segurados. Como atualmente tratamos de uma pandemia, com extensão e gravidade muito superiores à endemia, o artigo referido também tem muita pertinência para a solução da atual controvérsia.

A contaminação e a consequente possível situação de incapacidade para o trabalho do empregado deverá ser analisada pelo INSS, da mesma forma que as demais situações que suportam o pagamento de benefício previdenciário.

Ressalte-se que a contaminação de qualquer pessoa poderá ocorrer em casa, no deslocamento residência x trabalho e vice-versa, nos estabelecimentos comerciais relacionados ou não às atividades essenciais ou de lazer, e também no ambiente trabalho.

Caberá ao empregador, em eventual discussão administrativa ou judicial futura, demonstrar os cuidados que adotou para preservar a saúde de seus trabalhadores, como identificação de riscos, histórico ocupacional, trabalho em home office, escalas de trabalho, rodízio de profissionais, orientação e fiscalização sobre adoção de medidas relacionadas à saúde e segurança, além da entrega de equipamentos de proteção individual (EPI’s).

A preocupação com essa definição vai muito além da emissão da CAT e da garantia de estabilidade de 12 meses no emprego após a alta médica previdenciária prevista no art. 118, da Lei n.º 8213/91. É muito importante que a sociedade saiba interpretar corretamente a decisão do STF, assim como os ditames da Portaria do Ministério da Saúde que foi tornada sem efeito por ora, a fim de entender a extensão e o potencial grau destrutivo dessa interpretação precipitada pela caracterização “automática” do nexo causal

Infelizmente inúmeros contaminados pelo coronavírus vêm a óbito, impactando de forma mais assertiva no cálculo do FAP (e nos encargos incidentes em folha de pagamento), acerto de verbas rescisórias e de benefícios legais e convencionais decorrentes, ressarcimento de despesas médicas e hospitalares, danos morais e até pensão mensal vitalícia.

Se o empregador tiver que assumir também a responsabilidade pelo contágio dos empregados neste momento de pandemia e calamidade públicas, é bastante provável que prefira dispensar os empregados. Não nos parece, porém, que essa seja a melhor decisão a ser tomada.

Assim, independentemente da vigência da portaria ministerial em questão, apenas se caracterizado o nexo causal entre a doença e o exercício do trabalho (ou as condições em que o mesmo é exercido), a empresa deverá emitir o CAT e garantir os direitos inerentes aos seus funcionários.

Por fim, é imprescindível que as empresas documentem todas as iniciativas preventivas e orientativas adotadas em relação à saúde de seus empregados, a fim de poder demonstrar, em eventual discussão futura, que cumpriram com todas as obrigações e cuidados cabíveis a fim de preservar a saúde de seus colaboradores.

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital "Coronavírus e os Impactos Trabalhista" (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.

  • Brave

    é advogada, mestre e doutora em direito previdenciário pela PUC-SP, professora em cursos de pós-graduação, autora de livros e artigos em periódicos, ex-conselheira da Junta de Recursos e da Câmara de Julgamento do Conselho de Recursos da Previdência Social.

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