Cadastro positivo começa a valer de forma capenga

Transferência de informações depende de decreto; pedir para sair pode levar mais que o previsto

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São Paulo

A inclusão automática de consumidores no cadastro positivo, considerada por bancos fundamental para uma avaliação mais precisa do risco de um calote e redução dos juros, começa de forma capenga nesta terça-feira (9).

A lei, aprovada em abril, permite que a partir de agora empresas e birôs de crédito (Serasa, SPC, Boa Vista e Quod) possam trocar informações dos consumidores sem que seja dada uma autorização prévia.

No entanto, a transferência automática de dados entre as instituições financeiras e birôs de crédito precisa ser regulamentada por um decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que ainda não foi publicado.

Segundo informou a Casa Civil à reportagem da Folha, ainda não há data para a publicação do decreto.

Na prática, até que essas normas sejam publicadas, birôs poderão receber informações somente de empresas não financeiras, como varejistas, empresas de telefonia ou então concessionárias de luz e água.

Segundo a Anbc, o sistema que compartilha esses dados está pronto, mas irá processá-los apenas quando receber as informações de crédito dos bancos, principal elemento para formar o histórico de crédito.

As normas preveem que é possível cancelar a inclusão automática no sistema do cadastro positivo junto a qualquer um dos quatro birôs, por telefone, pelo site ou nos postos de atendimento.

Quem tentou pré-cancelamento, a exclusão do nome antes de o cadastro entrar em vigor, esbarrou na burocracia e em falhas no atendimento. Para cancelar a inclusão, é necessário atestar a titularidade e os birôs exigem uma série de informações pessoais que demandam tempo e paciência de quem quiser sair.

Os birôs informam que a partir desta terça, o titular pode solicitar o cancelamento pelos mesmos canais e deve ter os seus dados retirados do sistema em até dois dias úteis. 

A perspectiva inicial, no entanto, é que o procedimento varie de acordo com o birô. Em alguns, é necessário fornecer dados pessoais para ser retirado do cadastro positivo. Segundo os birôs, a ausência do decreto presidencial e a limitação na troca de informações que isto causa não compromete a exclusão do nome.

Caso haja dificuldade no cancelamento, devem ser acionados órgãos de defesa do consumidor, como o Procon.

Segundo especialistas, a retirada não é aconselhável. Para a concessão de crédito, ter um escore ruim pode ser melhor do que não ter escore, já que não fazer parte do cadastro positivo pode ser considerado um elemento de risco.

"A saída do cadastro fará com que as instituições que concedem crédito tenham acesso a menos informações sobre o consumidor ou a empresa que retirou seus dados. Ao avaliar a possibilidade de concessão de empréstimos e financiamentos, essas instituições só poderão visualizar as contas que não foram pagas", afirma Elias Sfeir, presidente da Anbc (Associação Nacional dos Bureaus de Crédito). 

O cadastro positivo é um banco de dados com todas as contas de consumidores, independentemente de elas terem sido pagas em dia ou em atraso. Pode ser comparado a um histórico escolar, que tem as notas boas e ruins. Além de operações de crédito tradicionais, como empréstimos e financiamentos, o cadastro passa a considerar contas de consumo pagas mensalmente. 

No Brasil, até então vigorava o cadastro negativo, que registrava apenas dívidas em atraso. Após a conta ser quitada, a informação deixava a lista de pessoas com nome sujo, mas servia para compor o escore de crédito. 

Era possível aderir de forma voluntária ao cadastro positivo, que conseguiu ao redor de 10 milhões de clientes. O potencial, com a inclusão automática, é de mais de 100 milhões de consumidores cadastrados.

Com uma massa enorme de informações a serem coletadas e com o uso de algoritmos para a análise de dados, a transferência automática de informações dos clientes entre empresas e birôs de crédito levanta questionamentos à privacidade.

“A lei vai contra o princípio de privacidade, pois abre uma exceção a necessidade de consentimento”, diz o advogado Gustavo Artese, do Viseu Advogados, enfatizando justamente o ponto mais polêmico do debate na lei no Congresso.

A lei acabou por pacificar que essa troca de dados ligados a crédito e a dívidas não fere o direito à privacidade, mas é preciso seguir alguns princípios, afirma professor Bruno Bioni, fundador do Data Privacy Brasil. 

Ele lista: necessidade (essa informação é realmente importante para a análise de crédito do cliente), proporcionalidade (terá um peso equivalente a sua importância atribuído na análise) e a transparência (os birôs precisam informar que tipos de dados coletam, de onde buscam e com quem compartilham essas informações).

Assim como o Facebook permite que um usuário baixe todas as informações que a rede social tem dele, o mesmo deve ocorrer com os bancos e birôs de crédito, que deverão atender ao pedido de acesso a todas as informações coletadas.

A Folha procurou os grandes bancos para entender quais informações são coletadas e consideradas na análise de crédito atualmente, mas eles não responderam aos pedidos de entrevista. Tradicionalmente, instituições financeiras acessam as notas dos birôs de crédito e combinam com informações próprias para decidir se emprestam dinheiro ou não.

Com os pagamentos com cartões de crédito e débito, e o uso de aplicativo para quitar as contas mensais, bancos têm informações detalhadas de onde e como consumidores gastam o salário todos os meses.

Alguns dos aplicativos dos bancos organizam por tipo de despesa, como alimentação, transporte, contas da casa. Sabem, por exemplo, quanto cada consumidor gasta com Uber ou em restaurantes.

Dados como a quantidade de dependentes, endereço e profissão podem ser utilizadas na análise de crédito. 

“Os bancos, especialmente as fintechs, usam uma série de informações para traçar um perfil de crédito. A análise pode incluir tipos de de gasto e perfis públicos em redes sociais, para ver se há compatibilidade entre o estilo de vida e os gastos financeiros”, afirma Fernando Mirandez, do Pinheiro Neto. 

Segundo o advogado, não há uma norma que defina como os dados devem ser tratados, apenas exigência de segurança da informação por parte do Banco Central, para evitar eventuais vazamentos.

Só com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) em vigor, em agosto de 2020, que os clientes vão poder saber quais dados estas instituições tratam, como isto é analisado e para que fim.  

O GuiaBolso, um aplicativo de finanças pessoais que consulta as informações do usuário em todos os bancos e cartões de crédito, faz justamente dessa sistematização de informações um diferencial para conhecer o consumidor e atribuir um risco de crédito a ele.

Dentro da plataforma, oferece crédito de bancos menores para aqueles consumidores que solicitam, baseados nesse escore.

Segundo Rafaella Perez, diretora jurídica do Guiabolso, a forma como essas informações detalhadas compõem o escore é considerado a inteligência, o diferencial de cada empresa.

“O grande ponto é quais serão esses dados que serão considerados excessivos”, acrescenta Bioni, antecipando futuros questionamentos nos Tribunais.

Aos birôs, porém, o compartilhamento é mais restrito: bancos e varejistas informam que há um empréstimo contratado, valor, prazo e que a dívida foi paga. Em caso, negativo, fica um vazio que indica a inadimplência.

Ainda na discussão de privacidade, o decreto presidencial precisará informar qual o período histórico de troca de informações.

Pela regra que vigorou até então, o Banco Central fixou que birôs recebem para o cadastro positivo os dados daquele mês e de 12 meses anteriores. Essas informações podem ser armazenadas por 15 anos.

Caso permaneça da mesma forma, os birôs poderão receber informações de um período em que consumidores não haviam consentido com o compartilhamento de informações, de antes de abril deste ano.

“Eu não gostaria de receber além de dados de abril. Exceto se no decreto vier essa especificação”, afirma o presidente da Boa Vista, Dirceu Gardel.

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