Falta de capital de giro já afeta economias, diz diretor da OCDE

Órgão recomenda medidas rápidas para conter a insolvência de empresas

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São Paulo

Em várias economias, sobretudo na Europa, o setor privado está ficando sem capital de giro, o que ameaça a solvência das empresas.

Segundo Luiz de Mello, 53, diretor de Políticas Públicas do Departamento Economia da OCDE (o clube dos países ricos), países que hoje têm espaço fiscal devem socorrer, com linhas de crédito e outras medidas, os mais afetados.

Ele não descarta que o endividamento recorde das empresas no mundo afete o setor financeiro. "Mas, do lado sistêmico, os bancos estão bem mais preparados do que antes para enfrentar essas pressões." 

O luso-brasileiro Luiz de Mello, 53, é diretor de Políticas Públicas do Departamento de Economia da OCDE, doutor em economia pela Universidade de Kent, no Reino Unido, e ex-economista do FMI (1999-2004) - Michael Dean/OCDE

Antes do coronavírus, a economia internacional não vinha bem e havia dúvidas sobre a munição de que os bancos centrais dispõem. A Europa opera com juros negativos desde 2014, e os Estados Unidos já reduziram muito a taxa. Há ferramentas disponíveis contra a epidemiaDesde meados do ano passado, a economia dava sinais de que perderia o dinamismo. No fim do ano, tivemos a expectativa de uma certa estabilização, com a volta da confiança. Aí vem esse vírus, que causa, basicamente, um choque de oferta. E a política monetária não é a ferramenta ideal para lidar com isso.

De fato, os juros já estão muito baixos. O que os bancos centrais podem fazer? Primeiro, manter o compromisso com uma política monetária acomodativa, como vêm fazendo. Segundo, restaurar a confiança dos mercados dizendo que questões de liquidez pontuais serão prontamente atendidas. O banco central da China foi o primeiro a atuar nesse sentido. O banco central americano, o único entre os grandes que ainda tem espaço para reduzir os juros, também baixou a taxa recentemente.

Como há pouca munição e efetividade dos bancos centrais para lidar com um choque de oferta, é preciso evitar que isso não se transforme também em um choque de demanda. E isso passa por manter a confiança no sistema.

O mundo se acostumou nos últimos dez anos a períodos de volatilidade muito baixa e de pouca aversão ao risco. Qualquer evento que possa mudar a percepção dos mercados em relação a riscos tem provocado reações abruptas. O ideal é cuidar para que esse tipo de reprecificação ocorra de forma gradual.

Se a política monetária não tem eficácia, haverá, por outro lado, pressão por mais gastos em áreas como saúde. Na Europa, houve muita resistência após a crise de 2008 em aumentar a expansão fiscal. Isso mudou? Já estamos vendo mudanças. Um dos aspectos é o emergencial, de garantir o funcionamento dos sistemas de saúde e de que haja apoio às empresas que estejam em dificuldades para obter capital de giro. Pois há economias que já estão parando por causa disso.

No caso da Itália, já foram anunciados aumentos nos prazos para o pagamento de hipotecas e para saldar dívidas com fornecedores. Tudo isso para evitar que um problema de liquidez se torne de insolvência. E que não haja uma quebra generalizada de empresas, principalmente as mais frágeis.

Do ponto de vista da política fiscal, acho que já há uma percepção de que existe mais espaço para atuar por esse canal. Canadá, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e Reino Unido já estão implementando políticas compensatórias.

Os países que hoje têm espaço fiscal e endividamento menor devem usar isso para apoiar a demanda neste ano e no ano que vem, dependendo dos impactos desse choque. Como estamos falando de crise de oferta, também há espaço nesse sentido, aprofundando reformas estruturais a fim de elevar a produtividade e os investimentos públicos.

Ao contrário da crise anterior, quando os problemas estavam concentrados nos bancos e nas famílias, desta vez os maiores endividados são as empresas não financeiras. Qual o risco de isso afetar o sistema financeiro? Após aquela crise, houve vários esforços regulatórios e de capitalização para tornar os bancos mais robustos. Como consequência não desejável, houve uma certa transferência de risco dos bancos para o setor não bancário. Mas esse elevado endividamento das empresas acabará tendo impacto no setor financeiro não bancário [nos mercados de títulos corporativos e debêntures, por exemplo].

Há riscos também para bancos mais expostos a setores afetados pela crise, como petroleiro, de aviação e turismo. Mas, do lado sistêmico, os bancos estão bem mais preparados do que antes para enfrentar essas pressões. Já a emissão de dívidas corporativas com nota "BBB", a mais baixa para ter grau de investimento, foi preponderante nos últimos anos. Isso pode fazer com que toda uma montanha de débitos passe para o lado frágil da distribuição de riscos.

Isso pode criar tensão nos mercados de dívida e de renda fixa de um modo geral, afetando o setor financeiro. É preciso lembrar também que o endividamento global desde a crise de 2009 cresceu se levarmos em conta famílias, bancos, empresas e governos.

Então temos dívidas recordes, sobretudo as corporativas, em um quadro de choque de oferta que pode virar de demanda... E dentro de um quadro de longo prazo que implica a desaceleração do crescimento da produtividade, o envelhecimento da população, que cria mais pressões fiscais, e questões climáticas complicadas. Uma série de "megatrends" que elevam aspectos de vulnerabilidade ligados às finanças públicas.

Não é um cenário bonito. Não é um cenário bonito porque ele expõe as fragilidades da economia global. Mas que deve ser interpretado não como uma realidade da qual não podemos escapar. Ao contrário, que precisa destacar as reformas a serem feitas. Sobretudo as que aumentem a produtividade e o crescimento potencial.

A Bolsa de Valores brasileira e o real estiveram entre os mais afetados. O que está por trás dessa fragilidade? A fragilidade do Brasil é fiscal. Por isso, as reformas em andamento são essenciais para a sustentabilidade da dívida pública e da política fiscal.

O Brasil se beneficiou muito nos últimos anos de um contexto global, ainda que de crescimento baixo, de menor aversão ao risco e de predisposição dos investidores em aplicar em ativos brasileiros. O Brasil é uma economia grande. Em qualquer reprecificação como a atual, é natural que os números sejam grandes.

O que pode ajudar o Brasil é manter a liquidez no mercado, controlar a situação fiscal e continuar com reformas que tragam choques positivos nas expectativas. E, num momento como o atual, é mais fácil passar o sentido de urgência que essas reformas realmente têm.

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